Lins, Paulo. Desde que Samba é Samba. São Paulo: Ed. Planeta, 2012, 304 p.
André Camargo
Bolsista de Estágio Interno Complementar
Universidade do Estado do Rio de Janeiro / FFP
Desde que o samba é samba, de Paulo Lins (2012), é um romance que ficcionaliza o surgimento do “samba de sambar”, nome dado por Ismael Silva ao novo ritmo, que é quase um dos personagens históricos que compõe o romance. Em um discurso controlado por um narrador heterodiegético, e privilegiando a linearidade diacrônica, Lins passeia por diversos temas, dentre eles, o da nova religião que surge, a Umbanda, marginalizada, assim como os sambistas e capoeiristas.
O enredo é ambientado no Rio de Janeiro da década de 1920, na região do Estácio e de seu entorno, na área conhecida como zona de baixo meretrício, por onde se espalhavam casas de cômodos, bares, biroscas e, claro, rodas de sambas. Era ali que se encontravam os negros, cafetões, prostitutas, homossexuais, sambistas, compositores até então desconhecidos, além de intelectuais, cantores, pintores e músicos da época, como Carmem Miranda, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Prudente de Moraes Neto, Cândido Portinari, dentre outros, que se reunião para ouvir o novo ritmo, que muitas das vezes só poderia ser tocado, cantado e sambado nos fundos dos terreiros de Umbanda.
Nas primeiras páginas do romance, somos apresentados aos personagens que no decorrer da trama formarão um triângulo amoroso: Brancura (negro, malandro, cafetão, capoeirista e sambista); Sodré (branco, português, funcionário do Banco do Brasil e cafetão) e Valdirene (prostituta famosa do baixo meretrício). Os três são o fio condutor da narrativa ambientada no bairro do Estácio. Os leitores somos apresentados à geografia do Rio de Janeiro, suas ruas, vielas, bairros e morros, com seus elementos de prostituição, drogas, violência, sexo, homossexualismo, corrupção, sem esquecer, de passagem, a fundação do primeiro bloco de corda, o “Deixa Falar”, hoje conhecido como Escola de Samba. Além disso, saberemos como se deu o primeiro concurso de samba e, consequentemente, o processo de apuração dos desfiles das escolas, bem como do aparecimento dos terreiros de umbanda e da trajetória de importantes personagens históricos como Tia Amélia (Hilária Batista de Almeida), mais conhecida no mundo do samba como Tia Ciata. Além dela, Silva, Bide, Baiaco, Edgar, Lopes, Valdemar, Lotório, Antônio das Cabras, Ivete, dentre outros, completam o painel romanesco de Lins.
A trama do romance não se concentra em um personagem principal, em um protagonista, mas em vários, com suas diversas tramas, histórias, relatos emoldurando a trajetória de consolidação do samba como gênero musical. Algumas personagens conferem força e vida à narrativa do livro. Brancura, adolescente negro cujo pai, ao perceber a atração do filho pela malandragem, apresenta-lhe a profissão de cafetão, mais tarde se tornará uma lenda no mundo da boemia, da prostituição e do samba. Era ele quem explorava a prostituta mais desejada e requisitada do Estácio, Valdirene, que se torna sua mulher de fé. Brancura controlava o maior número de prostitutas da região. No ritmo da fé e do samba, o malandro reinou nas ruas da zona do mangue. Ora cafetão, ora homem de família, quando resolve seguir os conselhos de seu pai de santo, dando a sua vida outro rumo, Brancura decide deixar a malandragem e formar família. Com isso, abandona as meretrizes que aliciava, troca a boemia por um emprego honesto, dedicando-se às composições de seus sambas. Mas logo a vida de boêmio entranhada em suas raízes o reclama. Para Brancura, o bom malandro era aquele que sabia ludibriar os “otários” nos jogos de chapinha, enganar a policia, andar sempre bem vestido com seus ternos e sapatos brancos, suas gravatas vermelhas e cartola na cabeça. Este que teve sua história contada e revelada nas páginas de Desde que o samba é samba atendia pelo eu-civil Sylvio Fernandes.
Sodré, rapaz branco, de origem portuguesa, regrado e estudioso, trava amizade com seu vizinho, Senhor Lotório, homem solitário, influente na sociedade e aposentado de guerra, que apresenta ao jovem a maconha e o sexo fácil das práticas homossexuais, por cujos serviços Sodré receberá um emprego público no Banco do Brasil, com o que ganhará prestígio e respeito no Estácio. Após a morte de seu protetor, Sodré conhece o sexo na zona do baixo meretrício, onde conhece Valdirene, amor à primeira vista. Nas idas e vindas deste triângulo amoroso, Sodré também se tornará cafetão.
Outro personagem que não podemos deixar de citar, por seu papel fundamental na criação do novo ritmo, hoje conhecido como samba, foi Ismael Silva, apresentado no romance apenas como Silva. “Crioulo” de fala mansa, educado, simples, com riqueza de arte e na sabedoria com as palavras, dono de uma arte inovadora e de vanguarda, foi um compositor que teve suas primeiras canções gravadas por Francisco Alves, considerado o maior intérprete daquela época. Através de parceria entre Alves e Silva, mais intelectuais passaram a frequentar a Zona do Mangue: “Era dali a música que se gravava agora, o poeta estava entre eles” (LINS, 2012, p. 163).
Nas rádios, a canção “Me faz carinhos” faz estrondoso sucesso. Silva começou a frequentar as casas e festas da então considerada alta sociedade do Rio de Janeiro, divulgando assim o novo ritmo, “o samba de sambar”, diferenciado do popular maxixe, pelas letras com mais gingado, mais quebrada, mais “prugurundum”, mais “ziriguidum”. A malandragem, em versos e músicas, espalhara-se de vez pelas calçadas dos cafés, bares e casas de cômodos.
Fincada nas matrizes africanas, a nova religião chamada de Umbanda (palavra originária do sânscrito, que quer dizer “Deus ao nosso lado” ou ainda, “a arte de curar”) surge oficialmente no dia 15 de Novembro de 1908, no bairro de Neves, em São Gonçalo. A casa que abrigava sem discriminação encarnados e desencarnados ganhou o nome de Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, “porque, assim como Maria acolhe o filho nos braços, também seriam acolhidos como filhos os que necessitam de ajuda e conforto” (LINS, 2012, p. 43). As falanges dos caboclos, pretos velhos e Exus poderiam prestar caridade naquele lugar que foi definido no romance como um “hospital de almas”.
Ainda falando da religião que ajudou a consolidar o samba, por abrigar compositores, sambistas, malandros e capoeiristas da região do Estácio nos fundos de seus terrenos, Paulo Lins nos apresenta os guias espirituais, que variavam entre Exus, Pretos Velhos, Ciganos, Erês, Caboclos etc. Essas entidades falavam de igual para igual com os filhos da terra: “Energia positiva gera coisa positivas, já dizia Exu” (LINS, 2012, p. 72); “Se você não quiser mudar de vidador, ninguém poderá te ajudar. Você tem que fazer por onde, tem que fazer merecer, axé” (LINS, 2012, p. 126); “Diga com quem andas, que eu te direi quem és”; (LINS, 2012, p. 186). Concluindo, o narrador nos conta:
Tudo na vida é assim: a gente tem que dar para receber, a começar pelo respeito às pessoas, aos animais, à natureza, enfim, ao planeta, ao universo. Se você não tiver respeito pelos outros, nada nem ninguém vai te respeitar. É dando que se recebe amor, carinho, amizade, perdão. E aqui, com os nossos guias, é um toma lá dá cá de carinho, cuidado, caridade, proteção, que você não imagina. No universo, cada coisa e cada ser são dependentes, por isso tudo todos têm que doar. (LINS, 2012, p. 37).
Não podendo ser praticado em outro lugar, era nos terreiros de Umbanda que se davam as reuniões para organizar a criação dos blocos de corda. Os “novos sambistas” propunham um bloco de carnaval onde crianças, mulheres, idosos, as famílias, em geral, pudessem brincar e se divertir, ao contrário dos “blocos de sujo”, que vinham às ruas com o intuito de brigar e provocar confusão. Ocorre no Terreiro de Mãe Mariana, no dia 12 de agosto de 1928, a reunião que marcou a fundação do primeiro bloco de corda, para o qual foram nomeados presidentes, diretores de alegoria e figurino, tesoureiros, além da organização das alas no desfile. Como homenagem às mulheres que ensinavam os segredos da nova religião, e que vendiam seus quitutes nas festas que tornaram possíveis a emergência do novo ritmo, Silva criou uma ala onde todos se vestiriam com as indumentárias representativas das mães de santo. Surge ali, a mais tradicional ala do carnaval carioca, a Ala das Baianas.
Desde que samba é samba mescla com eficiência literatura, arte e religião, conforme se constata nas seguintes passagens: “[...] Vocês fazem a poesia do dia a dia, meu filho! Luz é ter força e talento para lidar com as palavras e transformar em arte. A espiritualidade é a coisa mais humana que a gente tem na vida, né? E a poesia alimenta o espírito” (LINS, 2012, p. 234-235); “A arte reinventa este mundo, mostra outros, adivinha o futuro, descobre o passado”. (LINS, 2012, p. 236). Vejamos em mais um exemplo:
Há varias coisas que parecem ser o que segura tudo mesmo de fato. Uma delas é se juntar para cantar e dançar, justo que na arte não existe nada que possa menosprezar um tico um tico de grão que seja do humano... Os sentimentos falando em tom de maestria. Sintonia fina com a filosofia. A história feita em linguagem poética. O humano como ser escrito. Os signos da arte resolvendo tudo. O poder da palavra que não passa de sopros, som e razão vestida com o samba de avenida (LINS, 2012, p. 213).
O jornalista José Espinguela, com o intuito de promover o carnaval, criou o primeiro concurso de samba do Rio de Janeiro, no dia 20 de janeiro de 1929, trazendo vários jornalistas para serem jurados. Ele mesmo divulgaria as notas em alto e bom som. Com isso, faria a promoção e divulgação do carnaval carioca. O samba vencedor foi o de Heitor dos Prazeres, que concorreu pelo bloco de Carnaval Conjunto Carnavalesco Oswaldo Cruz, depois renomeado para Vai Como Pode, do bairro de Oswaldo Cruz, levado por Paulo Benjamin de Oliveira, mais tarde rebatizado como Paulo da Portela.
Angenor de Oliveira, mais conhecido como Cartola, Cartola e Arthur de Oliveira, cada um com seu samba, vieram pelo bloco Estação Primeira; e Silva, pelo Estácio. O samba de Silva foi desclassificado, pois tinha notas de flautas, o que era proibido. Assim, surgiriam as agremiações que em breve se transformariam nas escolas de samba Portela, Estação Primeira de Mangueira, Estácio de Sá, além de se estabelecer o evento hoje conhecido pela apuração de notas das escolas de sambas.
Desde que o Samba é Samba mostra também as raízes da violência policial, a corrupção e o tráfico de armas e drogas, como a maconha, cujos vários nomes eram cannabis, baurets, cigarro de índio, baseado, maronfa, ligue-ligue, charrão:
Sodré [...] fez amizade até com o delegado da jurisdição e com isso tinha moral para aliviar eventuais flagrantes de porte de arma, brigas e outros pequenos delitos que os frequentadores mais assíduos daquele lugar cometiam, instituiu uma quantia que ele mesmo recolhia dos comerciantes, dos ambulantes, dos outros cafetões, dos traficantes de cannabis e a repassava aos policiais do plantão de cada dia para que estes não perturbassem o bom andamento dos trabalhos e da diversão que aquele lugar proporcionava. Era autoridade paralela (LINS, 2012, p. 112-113).
Podemos afirmar, com Paulo Lins, que o samba nasceu em um mundo tido como marginal, na periferia em torno da Praça Onze de Junho, na zona do baixo meretrício, no Estácio e que, com a existência do bloco de corda, fez os moradores daquela comunidade e do seu entorno se unirem em novas amizades e alianças, de onde surgiram novos amores, novas parcerias, novas produções artísticas e novos movimentos culturais. Era esse o sentido da agremiação: a socialização através da cultura e da fé.
Em uma entrevista à revista Veja, de março de 2012, Paulo Lins que, “em Desde que o samba é samba, o foco é a produção cultural de um povo. O que importa no livro é a virada, o samba e a umbanda como questões estruturais, como a força de uma cultura vai de encontro ao preconceito e ao racismo”. O ritmo do samba, até os dias atuais, ficou conhecido pela seguinte expressão: “O bum bum paticumbum prugurundum. É isso ai, o nosso samba minha gente é isso ai: o bum bum paticumbum prugurundum” (LINS, 2012, p. 140). (Grifos nossos). O romance de Lins resgata e ficcionaliza essa cultura, hoje integrada, cuja trajetória ainda estamos a conferir.
Referências bibliográficas:
CARDOSO, S. F. A decadência bonita do samba. Gazeta do Povo, http://rascunho.gazetadopovo.com.br/a-decadencia-bonita-do-samba/. Acesso em 29 de maio de 2015. ______. http://rascunho.gazetadopovo.com.br/paulo-lins/. Acesso em 29 de maio de 2015.
FRANCESCHI, Humberto M. Samba de sambar do Estácio: 1928 a 1931. Rio de Janeiro: IMS, 2010.
LINS, Paulo. Desde que o samba é samba. São Paulo: Planeta, 2012.
MAIA, M. C. A voz do samba. Veja, São Paulo, 31 mar. 2012. Disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/entretenimento/a-voz-do-samba/. Acesso em 29 de maio de 2015.
Site:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_da_Portela. Acesso em 27 de junho de 2015.
http://jequitibadosamba.blogspot.com.br/2013/08/1928-abril-no-dia-28foi-fundado-_11.html. Acesso em 27 de junho de 2015
http://www1.folha.uol.com.br/fol/geral/carnaval/historia.htm. Acesso em 27 de junho de 2015.
Bolsista de Estágio Interno Complementar
Universidade do Estado do Rio de Janeiro / FFP
Desde que o samba é samba, de Paulo Lins (2012), é um romance que ficcionaliza o surgimento do “samba de sambar”, nome dado por Ismael Silva ao novo ritmo, que é quase um dos personagens históricos que compõe o romance. Em um discurso controlado por um narrador heterodiegético, e privilegiando a linearidade diacrônica, Lins passeia por diversos temas, dentre eles, o da nova religião que surge, a Umbanda, marginalizada, assim como os sambistas e capoeiristas.
O enredo é ambientado no Rio de Janeiro da década de 1920, na região do Estácio e de seu entorno, na área conhecida como zona de baixo meretrício, por onde se espalhavam casas de cômodos, bares, biroscas e, claro, rodas de sambas. Era ali que se encontravam os negros, cafetões, prostitutas, homossexuais, sambistas, compositores até então desconhecidos, além de intelectuais, cantores, pintores e músicos da época, como Carmem Miranda, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Prudente de Moraes Neto, Cândido Portinari, dentre outros, que se reunião para ouvir o novo ritmo, que muitas das vezes só poderia ser tocado, cantado e sambado nos fundos dos terreiros de Umbanda.
Nas primeiras páginas do romance, somos apresentados aos personagens que no decorrer da trama formarão um triângulo amoroso: Brancura (negro, malandro, cafetão, capoeirista e sambista); Sodré (branco, português, funcionário do Banco do Brasil e cafetão) e Valdirene (prostituta famosa do baixo meretrício). Os três são o fio condutor da narrativa ambientada no bairro do Estácio. Os leitores somos apresentados à geografia do Rio de Janeiro, suas ruas, vielas, bairros e morros, com seus elementos de prostituição, drogas, violência, sexo, homossexualismo, corrupção, sem esquecer, de passagem, a fundação do primeiro bloco de corda, o “Deixa Falar”, hoje conhecido como Escola de Samba. Além disso, saberemos como se deu o primeiro concurso de samba e, consequentemente, o processo de apuração dos desfiles das escolas, bem como do aparecimento dos terreiros de umbanda e da trajetória de importantes personagens históricos como Tia Amélia (Hilária Batista de Almeida), mais conhecida no mundo do samba como Tia Ciata. Além dela, Silva, Bide, Baiaco, Edgar, Lopes, Valdemar, Lotório, Antônio das Cabras, Ivete, dentre outros, completam o painel romanesco de Lins.
A trama do romance não se concentra em um personagem principal, em um protagonista, mas em vários, com suas diversas tramas, histórias, relatos emoldurando a trajetória de consolidação do samba como gênero musical. Algumas personagens conferem força e vida à narrativa do livro. Brancura, adolescente negro cujo pai, ao perceber a atração do filho pela malandragem, apresenta-lhe a profissão de cafetão, mais tarde se tornará uma lenda no mundo da boemia, da prostituição e do samba. Era ele quem explorava a prostituta mais desejada e requisitada do Estácio, Valdirene, que se torna sua mulher de fé. Brancura controlava o maior número de prostitutas da região. No ritmo da fé e do samba, o malandro reinou nas ruas da zona do mangue. Ora cafetão, ora homem de família, quando resolve seguir os conselhos de seu pai de santo, dando a sua vida outro rumo, Brancura decide deixar a malandragem e formar família. Com isso, abandona as meretrizes que aliciava, troca a boemia por um emprego honesto, dedicando-se às composições de seus sambas. Mas logo a vida de boêmio entranhada em suas raízes o reclama. Para Brancura, o bom malandro era aquele que sabia ludibriar os “otários” nos jogos de chapinha, enganar a policia, andar sempre bem vestido com seus ternos e sapatos brancos, suas gravatas vermelhas e cartola na cabeça. Este que teve sua história contada e revelada nas páginas de Desde que o samba é samba atendia pelo eu-civil Sylvio Fernandes.
Sodré, rapaz branco, de origem portuguesa, regrado e estudioso, trava amizade com seu vizinho, Senhor Lotório, homem solitário, influente na sociedade e aposentado de guerra, que apresenta ao jovem a maconha e o sexo fácil das práticas homossexuais, por cujos serviços Sodré receberá um emprego público no Banco do Brasil, com o que ganhará prestígio e respeito no Estácio. Após a morte de seu protetor, Sodré conhece o sexo na zona do baixo meretrício, onde conhece Valdirene, amor à primeira vista. Nas idas e vindas deste triângulo amoroso, Sodré também se tornará cafetão.
Outro personagem que não podemos deixar de citar, por seu papel fundamental na criação do novo ritmo, hoje conhecido como samba, foi Ismael Silva, apresentado no romance apenas como Silva. “Crioulo” de fala mansa, educado, simples, com riqueza de arte e na sabedoria com as palavras, dono de uma arte inovadora e de vanguarda, foi um compositor que teve suas primeiras canções gravadas por Francisco Alves, considerado o maior intérprete daquela época. Através de parceria entre Alves e Silva, mais intelectuais passaram a frequentar a Zona do Mangue: “Era dali a música que se gravava agora, o poeta estava entre eles” (LINS, 2012, p. 163).
Nas rádios, a canção “Me faz carinhos” faz estrondoso sucesso. Silva começou a frequentar as casas e festas da então considerada alta sociedade do Rio de Janeiro, divulgando assim o novo ritmo, “o samba de sambar”, diferenciado do popular maxixe, pelas letras com mais gingado, mais quebrada, mais “prugurundum”, mais “ziriguidum”. A malandragem, em versos e músicas, espalhara-se de vez pelas calçadas dos cafés, bares e casas de cômodos.
Fincada nas matrizes africanas, a nova religião chamada de Umbanda (palavra originária do sânscrito, que quer dizer “Deus ao nosso lado” ou ainda, “a arte de curar”) surge oficialmente no dia 15 de Novembro de 1908, no bairro de Neves, em São Gonçalo. A casa que abrigava sem discriminação encarnados e desencarnados ganhou o nome de Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, “porque, assim como Maria acolhe o filho nos braços, também seriam acolhidos como filhos os que necessitam de ajuda e conforto” (LINS, 2012, p. 43). As falanges dos caboclos, pretos velhos e Exus poderiam prestar caridade naquele lugar que foi definido no romance como um “hospital de almas”.
Ainda falando da religião que ajudou a consolidar o samba, por abrigar compositores, sambistas, malandros e capoeiristas da região do Estácio nos fundos de seus terrenos, Paulo Lins nos apresenta os guias espirituais, que variavam entre Exus, Pretos Velhos, Ciganos, Erês, Caboclos etc. Essas entidades falavam de igual para igual com os filhos da terra: “Energia positiva gera coisa positivas, já dizia Exu” (LINS, 2012, p. 72); “Se você não quiser mudar de vidador, ninguém poderá te ajudar. Você tem que fazer por onde, tem que fazer merecer, axé” (LINS, 2012, p. 126); “Diga com quem andas, que eu te direi quem és”; (LINS, 2012, p. 186). Concluindo, o narrador nos conta:
Tudo na vida é assim: a gente tem que dar para receber, a começar pelo respeito às pessoas, aos animais, à natureza, enfim, ao planeta, ao universo. Se você não tiver respeito pelos outros, nada nem ninguém vai te respeitar. É dando que se recebe amor, carinho, amizade, perdão. E aqui, com os nossos guias, é um toma lá dá cá de carinho, cuidado, caridade, proteção, que você não imagina. No universo, cada coisa e cada ser são dependentes, por isso tudo todos têm que doar. (LINS, 2012, p. 37).
Não podendo ser praticado em outro lugar, era nos terreiros de Umbanda que se davam as reuniões para organizar a criação dos blocos de corda. Os “novos sambistas” propunham um bloco de carnaval onde crianças, mulheres, idosos, as famílias, em geral, pudessem brincar e se divertir, ao contrário dos “blocos de sujo”, que vinham às ruas com o intuito de brigar e provocar confusão. Ocorre no Terreiro de Mãe Mariana, no dia 12 de agosto de 1928, a reunião que marcou a fundação do primeiro bloco de corda, para o qual foram nomeados presidentes, diretores de alegoria e figurino, tesoureiros, além da organização das alas no desfile. Como homenagem às mulheres que ensinavam os segredos da nova religião, e que vendiam seus quitutes nas festas que tornaram possíveis a emergência do novo ritmo, Silva criou uma ala onde todos se vestiriam com as indumentárias representativas das mães de santo. Surge ali, a mais tradicional ala do carnaval carioca, a Ala das Baianas.
Desde que samba é samba mescla com eficiência literatura, arte e religião, conforme se constata nas seguintes passagens: “[...] Vocês fazem a poesia do dia a dia, meu filho! Luz é ter força e talento para lidar com as palavras e transformar em arte. A espiritualidade é a coisa mais humana que a gente tem na vida, né? E a poesia alimenta o espírito” (LINS, 2012, p. 234-235); “A arte reinventa este mundo, mostra outros, adivinha o futuro, descobre o passado”. (LINS, 2012, p. 236). Vejamos em mais um exemplo:
Há varias coisas que parecem ser o que segura tudo mesmo de fato. Uma delas é se juntar para cantar e dançar, justo que na arte não existe nada que possa menosprezar um tico um tico de grão que seja do humano... Os sentimentos falando em tom de maestria. Sintonia fina com a filosofia. A história feita em linguagem poética. O humano como ser escrito. Os signos da arte resolvendo tudo. O poder da palavra que não passa de sopros, som e razão vestida com o samba de avenida (LINS, 2012, p. 213).
O jornalista José Espinguela, com o intuito de promover o carnaval, criou o primeiro concurso de samba do Rio de Janeiro, no dia 20 de janeiro de 1929, trazendo vários jornalistas para serem jurados. Ele mesmo divulgaria as notas em alto e bom som. Com isso, faria a promoção e divulgação do carnaval carioca. O samba vencedor foi o de Heitor dos Prazeres, que concorreu pelo bloco de Carnaval Conjunto Carnavalesco Oswaldo Cruz, depois renomeado para Vai Como Pode, do bairro de Oswaldo Cruz, levado por Paulo Benjamin de Oliveira, mais tarde rebatizado como Paulo da Portela.
Angenor de Oliveira, mais conhecido como Cartola, Cartola e Arthur de Oliveira, cada um com seu samba, vieram pelo bloco Estação Primeira; e Silva, pelo Estácio. O samba de Silva foi desclassificado, pois tinha notas de flautas, o que era proibido. Assim, surgiriam as agremiações que em breve se transformariam nas escolas de samba Portela, Estação Primeira de Mangueira, Estácio de Sá, além de se estabelecer o evento hoje conhecido pela apuração de notas das escolas de sambas.
Desde que o Samba é Samba mostra também as raízes da violência policial, a corrupção e o tráfico de armas e drogas, como a maconha, cujos vários nomes eram cannabis, baurets, cigarro de índio, baseado, maronfa, ligue-ligue, charrão:
Sodré [...] fez amizade até com o delegado da jurisdição e com isso tinha moral para aliviar eventuais flagrantes de porte de arma, brigas e outros pequenos delitos que os frequentadores mais assíduos daquele lugar cometiam, instituiu uma quantia que ele mesmo recolhia dos comerciantes, dos ambulantes, dos outros cafetões, dos traficantes de cannabis e a repassava aos policiais do plantão de cada dia para que estes não perturbassem o bom andamento dos trabalhos e da diversão que aquele lugar proporcionava. Era autoridade paralela (LINS, 2012, p. 112-113).
Podemos afirmar, com Paulo Lins, que o samba nasceu em um mundo tido como marginal, na periferia em torno da Praça Onze de Junho, na zona do baixo meretrício, no Estácio e que, com a existência do bloco de corda, fez os moradores daquela comunidade e do seu entorno se unirem em novas amizades e alianças, de onde surgiram novos amores, novas parcerias, novas produções artísticas e novos movimentos culturais. Era esse o sentido da agremiação: a socialização através da cultura e da fé.
Em uma entrevista à revista Veja, de março de 2012, Paulo Lins que, “em Desde que o samba é samba, o foco é a produção cultural de um povo. O que importa no livro é a virada, o samba e a umbanda como questões estruturais, como a força de uma cultura vai de encontro ao preconceito e ao racismo”. O ritmo do samba, até os dias atuais, ficou conhecido pela seguinte expressão: “O bum bum paticumbum prugurundum. É isso ai, o nosso samba minha gente é isso ai: o bum bum paticumbum prugurundum” (LINS, 2012, p. 140). (Grifos nossos). O romance de Lins resgata e ficcionaliza essa cultura, hoje integrada, cuja trajetória ainda estamos a conferir.
Referências bibliográficas:
CARDOSO, S. F. A decadência bonita do samba. Gazeta do Povo, http://rascunho.gazetadopovo.com.br/a-decadencia-bonita-do-samba/. Acesso em 29 de maio de 2015. ______. http://rascunho.gazetadopovo.com.br/paulo-lins/. Acesso em 29 de maio de 2015.
FRANCESCHI, Humberto M. Samba de sambar do Estácio: 1928 a 1931. Rio de Janeiro: IMS, 2010.
LINS, Paulo. Desde que o samba é samba. São Paulo: Planeta, 2012.
MAIA, M. C. A voz do samba. Veja, São Paulo, 31 mar. 2012. Disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/entretenimento/a-voz-do-samba/. Acesso em 29 de maio de 2015.
Site:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_da_Portela. Acesso em 27 de junho de 2015.
http://jequitibadosamba.blogspot.com.br/2013/08/1928-abril-no-dia-28foi-fundado-_11.html. Acesso em 27 de junho de 2015
http://www1.folha.uol.com.br/fol/geral/carnaval/historia.htm. Acesso em 27 de junho de 2015.